quarta-feira, 30 de julho de 2014

Obediência


Pra mim sempre foi fácil me submeter às diversas coisas. A visão que eu tinha de amor era a que eu deveria me entregar sem perguntas e isso me era sussurrado desde antes de eu perceber o que era aquela coisa branca entre as minhas pernas e o porquê de eu precisar tomar banho sempre que me deitava com aquele velho. Ele dizia que era amor, que ele me amava assim como eu demonstrava meu amor por ele. Cresci com essa idéia. 
Não, não me entenda errado. Eu não o condeno ou me sinto mal por isso. Eu era uma criança, não poderia entender. Hoje abomino casos como esse mas não sinto rancor algum pelo homem ou do que me aconteceu. Mais cedo ou mais tarde eu descobriria, eu não tinha pressa.
Eu tinha minhas próprias vontades. Todas as vezes eu precisava puxar os freios (ou eram puxados sozinhos, não tenho memória das primeiras vezes). Eu era mais fraca, aquilo não era apropriado, eu poderia... machucar alguém. Mas eu ainda queria sentir prazer. Achei na subserviência uma forma de me contentar e também de demonstrar meu afeto. Se eu amo então que tome meu corpo e me permita tocar o seu. Não havia nada errado naquilo, certo? Lógico que não, falamos de humanos aqui. Tudo é discutível e dependente de situações.
Nunca entendi a imagem que fizeram de mim e ainda me deparo com essa indagação. Talvez esperem de mim uma moça bruta, ou sem sentimentos, ou deveras amorosa e fogosa. De fato eu pertenço à categoria onde não há mais nem menos: eu fico no meio. Sou eu apenas, com alguns ideais distorcidos mas trilhando o caminho que me pareceu atraente.
Mas... e quanto à minha fome real? E quanto aos meus rugidos? Permaneceram enjaulados e acostumaram-se com isso. Das tantas vezes em que me deparei com um corpo disponível à receber minhas mordidas já o meu próprio corpo não me obedecia. Um branco em minha mente, um quê de "não faça isso" atava minhas mãos e meus olhos enquanto minhas pernas enfraqueciam para que eu fosse tomada como um animal no cio. E sempre o fui.
Decepcionei. Frustrei. Fiz ligações apenas sexuais mas vi que o contexto era imenso: todo o meu eu estava submisso e este era o último cadeado a ser quebrado. Continuo obediente à uma voz morta dentro da minha cabeça, uma que não deseja a minha satisfação ou me libertar, embora eu saiba que precise muito.
E não vou conseguir isso sozinha. 

terça-feira, 29 de julho de 2014

Ajoujo

Os cheiros são de sombras.
Ouço o crepitar de pensamentos se modificando.
Sinto a maciez do meu novo leito:
um punhado de plumas brancas com pedaços de algodão envelhecidos.
Cheiro de crisântemos e terra.
Tudo em mim existe.
Mas o meu instinto ainda está aprisionado. Ainda sou uma cadela domesticada.
Ainda estremeço. Ainda retrocedo em passos desconfiados.
Ainda vivo em um canil, mas em meu pescoço há algo novo
que reluz e parece não tocar minha pele. 
Parece feito da minha própria carne,
parece mais firme do que todas as outras.
Estou em paz, mesmo ainda aprisionada.
Mas não estou mais moribunda
e minha cauda não balança da mesma forma.
Talvez
eu morda.
Talvez
eu viva.
Talvez esta coleira
me leve ao meu destino.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Carta ao amado


À você dedico esta taça cheia de pedaços de sanidade, como pequenos cubos de açúcar e cristais de arsênico, mergulhados em um líquido carmim. Meus lábios, antes imóveis, agora sorriem. Essa cor é a mesma de meu rosto e essa vida a mesma de meus olhos.
O cheiro agridoce dessas pétalas foi trazido pelo vento, meu amor, de um jardim onde eu costumava viver. Onde minha doçura se desintegrou sob o som dos ossos de cada esperança que abandonei. Onde eu costumava caminhar e perder meus pensamentos, e foi onde os meus sonhos ficaram. 

Exceto você.

Você nasceu de um sonho que nunca concebi. Ora, e como poderia eu assassinar algo que sequer conhecia? Como poderia arfar sob o peso de mil lesões sem antes conhecer o alívio de quando seus lábios tocam os meus? E o sabor de tal brandura não poderia sequer brotar entre qualquer pólen do meu jardim! 
Por isso eu brindo, brindo e de um só gole bebo desta taça. E quando engolir a última gota, quando deixar de me embriagar, então você, meu amor, será mais uma pétala envelhecida entre as páginas daquela memória. Mas com certeza a mais bela de todas. A única real.

Você vive em mim.
E eu viverei sob o instante em que você existiu.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Reflexo


O som dos grilhões eram uma sinfonia de pequenas pétalas tocadas por seres invisíveis na mais absoluta escuridão. Eu me movia para saber que ainda estavam lá e que minha pele existia. Que minhas feridas iriam doer. Eu me movia apenas para que a dor da respiração me fizesse sorrir. Mas eu nunca vi a cor do ferro que me atava. Eu nunca vi o formato dos cacos que a melodia me fazia dançar em cima. Aquilo não chegava a ser loucura, era conforto.

Então um raio de luz, límpido, de um púrpura que quase desenhava pequenas alegrias na parede, fez com que eu percebesse: havia mais. Me acostumei àquela iluminação fantasmagórica e vi aquele reflexo. Era de uma pequena, ela parecia tão... inútil. Ela me observava através do véu daquela superfície, assustada. Logo me acusava, apontava minha feiura, minhas fraquezas, minha insignificância. Eu levantava meus finos braços num convite, mas a sinfonia das correntes tocavam e eu apenas via a pequena apontando seus dedos, fracamente, para mim mesma. Logo não era uma pequena, mas duas, três... muitas. O que queriam? Eu não estava sozinha ali? Por que me olhavam daquela forma?

Uma chuva começou, salgada, levemente fria. Afastei o cabelo do meu rosto e pude ver aqueles olhos, tão castanhos, como um filhote de fera perdido. Eu ri enquanto a chuva traçava linhas em meu rosto. As faces diante de mim permaneciam impassíveis, tão duras quanto a bola de ferro que me prendia àquele lugar.

Então... um gosto metálico, adocicado, tomou conta de mim. Ajoelhei nos cacos espalhados pelo chão de pedra e musgo enquanto meu corpo estremecia, febril. Ouvi risadas. Senti minha boca rasgar-se num sorriso escancarado, bestial. A chuva continuava caindo e agora mãos pousavam sobre minha cabeça e me afagavam. Eu as mordi enquanto as gargalhadas acompanhavam a melodia dos grilhões. O gosto metálico... se intensificou. Aquilo ainda não era loucura.

A luz se foi. Voltei a dançar. Mas não estava mais sozinha. Haviam novas feridas, de alguma forma.
Eu estava viva
Então eu sorria.