Enquanto o pesado ônibus balançava, numa fração de segundo, sua mão havia atravessado o vidro à sua frente. Não havia ninguém ao seu lado, a cadeira após a porta que ficava frente ao vidro de proteção fora sua única testemunha. O relâmpago contendo toda a emoção, contida, que carregava em seu cérebro havia sido lançado através de seu braço até desencadear o impacto de seus pequenos dedos, protegidos em forma de soco, na placa de vidro à sua frente. Em um instante não havia nada para sentir, apenas ver o balé sem sentido que os cacos formavam no ar antes de cair no chão.
Filetes de dor percorreram sua mão, e logo fitilhos cor de carmim desenhavam caminhos em sua pele, como rachaduras desesperadas em dar lugar à algo que estava crescendo sob o solo. Como fios de cabelo, singulares, gelados, dançando em sua superfície, um breve prazer tomou conta de tudo. Como uma pequena flor de carne, a mão abriu-se. Mesmo assim, nenhum grito. Fechou os olhos e pôde ver o ferimento por detrás de suas pálpebras, brilhando. As cores formavam uma sinfonia e sua alma estremeceu, comovida. De repente tudo havia se libertado mas, em outro segundo, o sangue passou a espirrar como uma fonte impura e fétida. Não havia beleza dentro de si, apenas o húmus de toda a imundície. Sua mão continuava a se transformar numa flor, cada vez mais aberta, florescendo, esperneando. Mas seus dedos lembravam galhos velhos, pendurados, impossibilitados de sentir qualquer coisa. E tanto que os havia protegido... agora já não podiam sentir, não podiam ser parte daquilo.
Então chorou. Chorou de pesar pelo esforço em proteger aqueles pequenos dedos que tanto ansiavam em sentir, em tatear algo inacreditável, mas apenas haviam servido de enfeites para a flor de carne, que agora começava a se desvanecer. Viu os fitilhos virarem sonhos, viu a flor morrer como um suspiro, na metade do tempo que levara para se libertar. Abriu bem o punho e viu as linhas de sua mão. Olhou para o vidro intacto à sua frente. O ônibus balançara mais uma vez e logo chegaria ao seu destino. Deslizou a ponta do indicador por ele, pensando, lembrando das rachaduras e da impureza que arrastava-se no subsolo de seu íntimo. Continuaria tudo aprisionado.
Chorou por dentro mais uma vez e saltou em seu ponto, o vento frio afagando suas bochechas em seu caminho para casa.
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